Eu não sou um cara competitivo. Nasci tranquilo, cresci assim e até já
tentei trabalhar um sangue nos olhos. Mas não dá. Mesmo assim, me
considero fã de "Street Fighter". "Super Street Fighter II" foi um dos
meus primeiros jogos no Super Nintendo, gastei o dedo batendo (e
apanhando) em reuniões nas festas de aniversário e acredito que é bem
possível gostar da série sem ser um "freak" dos games de luta.
É claro que já alternamos momentos de amor e ódio. Das humilhações
diárias para meu amigo Ozzy, veterano de Guile, àquela única vitória no
fim de semana que fazia você esquecer de todo o resto e tentar a sorte
mais uma vez. "Street Fighter" sempre teve dessas.
Mas eu achava que esse relacionamento pudesse ter um final
permanentemente feliz em "Street Fighter V", lançado na terça-feira (16)
para PlayStation 4 e PC.
Existia a promessa de ele ser mais acessível, afinal. Quem sabe não
encontrava meu jogo e aparava minhas arestas? Era a motivação que eu
precisava, e tenho certeza que muita gente também pensou dessa forma.
Não foi bem assim.
Da forma como foi lançado, "Street Fighter V" é frustrante para novatos
e veteranos. Ele é um ótimo game de luta, divertido, versátil e com
mecânicas sólidas, mas que acaba soterrado pela baixa oferta de conteúdo
e problemas persistentes de conexão. É como se o game da Capcom tivesse
chegado incompleto, mas com uma etiqueta marcando um preço bem cheio.
Laura Matsuda, a nova brasileira de 'Street Fighter V', encara o veterano Ryu
A jornada do herói
É de partir o coração ver um jogo tão bom como esse sendo vendido em um
pacote tão precário e abusivo. Porque apesar de fracassar no quesito
produto, "Street Fighter V" consegue reformular tudo que foi enraizado
pelo game anterior há quase 8 anos sem soar injusto, ajudando os
inexperientes e garantindo profundidade suficiente para os dedicados
nadarem de braçada.
As V-Triggers, V-Skills e V-Reversals são as grandes responsáveis pelos
acertos. Elas são golpes de fácil execução que acionam um status ou
comando especial dependendo de cada lutador. Não foram poucas as vezes
que surpreendi o tempo de pulo do oponente com o "hadoken" carregado de
Ryu, fruto de sua V-Trigger. Ou frustrei um ataque adversário ao rebater
uma magia usando a V-Skill de M. Bison.
Dominar as habilidades de todos, por outro lado, leva tempo, o que
permite um leque abrangente de estratégias. E como até o "timing" dos
movimentos e golpes básicos dos personagens é diferente em relação a
"Street Fighter IV", o nível de conhecimento entre jogadores novos e
veteranos está relativamente equilibrado nesse novo game.
Zangief parte para cima do novato Rashid em cena de 'Street Fighter V'
Com exceção de Zangief, um dos poucos que ainda exigem movimentos
maiores que uma meia-lua no controle, vários lutadores se comportam de
forma diferente. Charlie Nash, por exemplo, que antes usava golpes "de
carregar" e era visto como um clone de Guile, agora solta magias. Com
isso, ele consegue usar seus chutes especiais para cobrir grandes
distâncias na tela e com relativa agilidade.
Entre os novatos, F.A.N.G. é o mais complexo de todos e promete causa
dor de cabeça. Ele tem movimentos pouco ortodoxos e a capacidade inédita
de envenenar os adversários. Já Laura é uma boa escolha para quem gosta
de soltar agarrões, enquanto Necalli e Rashid partem pra cima com
bastante velocidade – este último, aliás, tem golpes que lembram
bastante Joe Higashi, da série "Fatal Fury".
Charlie Nash retorna em 'Street Fighter V'
No geral, com "Street Fighter V" a Capcom tomou decisões que são
capazes de fomentar a nova geração de Ryus, Kens e Lauras Matsuda que a
série precisa para se manter viva nesse mundão competitivo. É o fácil de
aprender, difícil de dominar, aparecendo mais uma vez com sucesso.
Só o tempo dirá se essas mudanças tornaram o game fácil demais, se os
veteranos serão capazes de se adaptar ou não. Torneios profissionais
acontecerão, e talvez aí saibamos se "SF V" serve para o posto que
pertencia ao seu antecessor. O que dá para dizer agora é que ele é
divertido, eletrizante e dinâmico. Tudo certo nos combates.
O problema é todo o resto.
Rashid luta contra Ryu num combate que poderia ser chamado de Capcom x público
Um 'ratatataruken' só não faz verão
Enquanto escrevia esse texto, na noite de quinta-feira (18), os modos
online de "Street Fighter V" ainda tinham inconsistências. Nos 10 dias
que passei jogando, antes e após o lançamento oficial do game, enfrentei
vários problemas de conexão aos servidores e levei minutos para
encontrar um único oponente em uma partida ranqueada.
Na madrugada de quinta (18), passei por momentos raivosos de "lag", que
é aquele atraso entre o que está acontecendo no jogo e o que você vê na
tela. Senti o sabor da vitória ser tirado várias vezes da minha boca
apenas porque, sei lá, ~conexões~.
O pior é que tudo isso até passaria batido, já que o meu desempenho
pífio no ambiente online era esperado. Era justamente isso que eu
buscava corrigir com "Street Fighter V": só precisava das ferramentas
para treinar minhas novas habilidades e me preparar para o selvagem
ambiente online, a fronteira final dos games de luta.
Então beleza, vamos jogar sozinho e.... nada. Não há opções. Não existe
um modo "arcade", aquele basicão, em que você enfrenta vários
oponentes, depois um chefe e assiste a um final diferente para cada
lutador.
O "modo história" disponível neste momento é patético, um plano de
fundo irrisório de cada personagem onde você disputa três ou quatro
lutas sem desafio algum – ah, você descobre que a brasileira Laura
Matsuda gosta de pagar churrascos para seus adversários (???).
M. Bison fica muito mais forte depois de ativar seu V-Trigger em 'Street Fighter V'
O verdadeiro modo história, que irá interligar a história de todos os
lutadores, está prometido para uma atualização gratuita em junho. O modo
de desafios, que trará testes para ajudar a aprender novas combinações e
manhas, chega só em março.
É possível encarar o enfadonho modo sobrevivência numa tentativa de
acumular o dinheiro virtual Fight Money, que pode ser usado para comprar
roupas e novos lutadores do na loja virtual de "Street Fighter V"...
que também só abre no mês que vem. Ah, e se você estiver desconectado da
internet, desencana: sem uma conexão é impossível acumular dinheiro...
que de qualquer forma é inútil, por enquanto.
OU SEJA: a única forma de melhorar em "Street Fighter V", hoje, é no
modo treinamento, um lugar que não traz motivação alguma para o jogador
iniciante seguir se aprimorando. Você até poderia me chamar de "noob",
falar para eu engolir o choro e ir para as partidas online. Mas além de
eu correr o risco da experiência canibalizar a minha vontade de jogar o
game graças ao meu despreparo, não há garantia que o ambiente
multiplayer irá funcionar como devia, pelo menos por enquanto
F.A.N.G é um dos novos lutadores e é capaz de envenenar oponentes em 'Street Fighter V'
A Capcom lançou uma versão inacabada de "Street Fighter V". Planejar o
lançamento de conteúdos a médio prazo é uma coisa, com passes de
temporada, ajustes nos lutadores, etc. Estabelecer a base do que a
empresa vê como sua plataforma online é outra, totalmente justa.
Mas o que a Capcom fez foi corporatizar o "early access", um modelo de
negócios que se popularizou no Steam justamente com o objetivo
contrário: ajudar games menores ainda em produção a juntar verba e, ao
mesmo tempo, coletar "inputs" diretamente da opinião pública. A
diferença aqui é que "Street Fighter V" está bem longe de custar o preço
de um jogo do tipo. Nos PCs, ele custa R$ 100. No PlayStation 4, chega a
exorbitantes R$ 280.
Rainbow Mika retorna em 'Street Fighter V' após particiar da série 'Alpha'
Ao jogar "Street Fighter V", o modelo de negócios do novo "Hitman" não
soa estranho. Com o intuito de atrair mais público para um jogo AAA (que
tem um preço mais alto), a Square Enix fatiou o game em várias etapas e
está cobrando mais barato pela primeira delas. O resto sai ao longo do
ano, junto do "feedback" dos jogadores.
A Capcom
deveria ter tomado decisão similar. Porque da forma que está, vale mais
a pena esperar pelo que vai acontecer com o game de luta antes de
pensar em gastar o seu dinheiro.
Da forma como foi lançado na terça (16), "SF V" é apenas a planta do
prédio que poderá vir a se tornar um dia. Um projeto rabiscado a lápis
preto em que você consegue ver onde ficam os quartos, a sala de estar e o
banheiro, mas que não mostra todos os ambientes conectados entre si. E
que exige pagamento à vista apenas para visitar o apartamento – que não
está mobiliado.